Mulheres destravam o plantio de cannabis no Brasil


Pesquisadora forneceu os argumentos técnicos para liberação do cultivo medicinal e ministra do STJ autorizou

Duas mulheres assumiram neste ano a liderança de um movimento que pode incluir um novo cultivo no portfólio do agro brasileiro em 2025 com potencial de movimentar bilhões de reais e ainda derrubar um tabu que dura 87 anos.

A planta é o cânhamo industrial, uma variedade da cannabis sativa que que não provoca efeitos psicotrópicos, pois tem no máximo 0,3% de tetrahidrocanabinol (THC), o princípio ativo da maconha. As mulheres são a pesquisadora Kiara Carolina Cardoso, que usa a cannabis para tratamento de um adenoma, e a ministra Regina Helena Costa, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que em setembro deste ano já tinha se destacado na corte pela defesa da mulher no espaço de trabalho, especialmente no Judiciário, após ter uma leitura de voto interrompida pelo colega Gurgel Faria.

A empresa de Kiara, a DNA Soluções em Biotecnologia, ingressou no Judiciário há oito anos solicitando a permissão para o plantio do cânhamo para fins medicinais. O pedido foi negado em instâncias inferiores, mas ela recorreu, o caso chegou ao STJ e foi escolhido pela ministra como modelo para o julgamento do tema.

“Existiam vários processos no tribunal solicitando autorização para o cultivo do cânhamo para fins medicinais. A ministra estudou muito o assunto e escolheu o processo da DNA Biotecnologia como modelo devido aos nossos argumentos técnicos muito bem fundamentados”, disse Kiara em entrevista exclusiva à Globo Rural.

No julgamento, apoiados no texto da ministra relatora, a Primeira Seção do STJ autorizou, em votação unânime, a importação de sementes e o cultivo de cânhamo industrial para fins medicinais e deu um prazo de seis meses para a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) regulamentar a prática no país.

“Conferir ao cânhamo industrial o mesmo tratamento imposto à maconha, desprezando fundamentações científicas existentes entre ambos, configura medida notadamente discrepante de teleologia abraçada pela Lei de Drogas, cujo objetivo primordial consiste em prevenir o uso e o comércio de substâncias que provoquem dependência, tão somente”, justificou a ministra no julgamento.

Segundo Kiara, agora não há mais como a Anvisa ficar omissa. Além de ter que cumprir a ordem do STJ, a agência tem que considerar que a importação da matéria-prima da cannabis para a fabricação de medicamentos está ficando alta demais e a judicialização do plantio está onerando a sociedade brasileira.

“O próprio ministro Fávaro (Carlos Fávaro, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Mapa) também está sinalizando que deseja uma regulamentação do plantio.”


Atualmente, apenas associações e pessoas físicas que conseguiram habeas corpus na Justiça têm o direito de cultivar a planta para a fabricação dos medicamentos. Muitos Estados já disponibilizam medicamentos à base de cannabis na rede pública, mas são obrigados a importar o produto.

Kiara, pesquisadora de plantas de soja, milho e algodão para contenção, conta que seu interesse pela cannabis surgiu depois que ela foi diagnosticada com adenoma e se tornou não responsiva às medicações convencionais. Ela teve muitas dores, quase perdeu a visão, teve problemas hormonais e ficou impedida de trabalhar. Uma tia que mora nos Estados Unidos sugeriu que ela experimentasse o canabidiol, que estava dando bons resultados no tratamento do câncer cerebral de um sobrinho.

“Comecei a pesquisar a cannabis em 2016 e consegui uma amostra para testar. Tive bons resultados rapidamente na diminuição das dores e melhoras no sono. Comecei a tropicalizar as sementes na chácara que eu moro e tinha também meus laboratórios para os testes. Aí solicitei na Justiça a primeira autorização de autocultivo do Paraná e consegui o habeas corpus em 2018.”


Diante do sucesso da combinação da sua formação em farmácia com a experiência como pesquisadora do agro e da procura crescente de pessoas pelos medicamentos, Kiara fundou em 2019 uma ONG para ajudar outros pacientes, que hoje distribui medicamentos para mais de 500 pessoas.

Hoje, ela conta que usa óleo e pomada para dores e cosméticos que pode manipular com a cannabis que planta. Usa também medicamentos convencionais para estabilizar o tumor e para tratar o que o tumor causou no pulmão e no fígado. Mas, diariamente, toma no máximo 5 medicamentos comuns, sem tarja vermelha, enquanto antes precisava tomar de 15 a 20 comprimidos por dia.

A pesquisadora pretende cultivar a planta na filial da DNA em Petrolina (PE), onde mantém laboratórios. O próximo passo para acelerar o plantio no Brasil, diz ela, é a formação de muitas parcerias de pesquisa para desenvolver variedades adaptadas aos climas e solos das diferentes regiões, com uso inclusive da inovadora predição gênica para criar sementes estáveis em relação ao THC.
Kiara Carolina Cardoso pretende cultivar a planta na filial da DNA em Petrolina (PE) — Foto: Arquivo pessoal
Nos últimos anos, muitas universidades e centros de pesquisa já demonstraram interesse em pesquisar a planta. Em julho, a maior empresa pública de pesquisa agropecuária do país, a Embrapa, enviou à Anvisa um projeto de solicitação formal para a liberação de plantio da cannabis com finalidade de pesquisa no país.

Kiara vê muitas oportunidades para o plantio de cânhamo no Brasil. Segundo ela, a prioridade, agora, é o uso medicinal, mas quando Anvisa e Mapa estiverem em consonância, o país poderá dar um passo maior e cultivar a planta para a produção de papel (o cânhamo precisa apenas de 4 meses de cultivo para se transformar em papel, em vez dos 4 anos do eucalipto), fibras, concreto, além do uso em rotação de culturas como soja e milho.

“Essa planta pode trazer muita riqueza para o Brasil, que atualmente tem o maior potencial de produção do agro do mundo. Vai ser muito importante para várias cadeias produtivas. Podemos ter um agro mais verde e mais sustentável, com crédito de carbono gerado pela planta que tem raízes profundas.”



Mercado

Relatório da Kaya Mind, startup brasileira especializada em dados e inteligência de mercado no segmento da cannabis, do cânhamo e de seus periféricos, apresentado no final de novembro aponta que o mercado de cannabis medicinal movimentou neste ano R$ 853 milhões no Brasil ante os R$ 699 milhões de 2023. A projeção é chegar a R$ 1 bilhão em 2025 e passar de R$ 1,1 bilhão no ano seguinte.

No total, 672 mil pacientes utilizam tratamentos com cannabis medicinal, um aumento de 56% no número de pacientes em comparação com o ano anterior. Desse total, 47% importam os medicamentos, 31% tem acesso via farmácias e 22% compram de associações que têm autorização judicial.

No mundo, segundo a Grand View Research, a cannabis medicinal atingiu um valor de mercado de US$ 27,4 bilhões em 2023, com projeção de ultrapassar US$ 65 bilhões até 2030.

Nos Estados Unidos, de acordo com o Departamento de Agricultura (USDA), já existem 11,5 mil hectares de área plantada com cannabis (ou hemp). No país, a produção é permitida em 38 Estados e o consumo, medicinal e também recreativo, é legalizado em 24 dos 50 Estados.

Fonte : Globo Rural

Nenhum comentário

Tecnologia do Blogger.